Novas espécies descobertas recentemente no Brasil refletem a necessidade de pesquisa e conservação do patrimônio pouco conhecido envolvendo a diversidade de fungos tropicais
por Ricardo Braga-Neto e Cassius V. Stevani
IMAGENS CEDIDAS PELO AUTOR | |
Em 2008, Dennis Desjardin, da San Francisco University State e colaboradores publicaram uma revisão sobre fungos bioluminescentes, atualizando e expandindo o trabalho de E. C. Wassink, de 1978, ‘Luminescence in fungi’, que se referia principalmente a espécies asiáticas e europeias. Segundo a revisão, são conhecidas 64 espécies de fungos bioluminescentes no planeta. Nesses 30 anos, as novas descobertas de bioluminescência descritas por Desjardin e os demais autores são referentes ao Brasil, principalmente à região Sudeste. O Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), em São Paulo, é o local onde se conhece o maior número de espécies simpátricas – espécies que ocorrem na mesma região – de fungos bioluminescentes de todo o mundo. No total, são sete espécies identifi cadas (Gerronema viridilucens, Mycena lucentipes, Mycena discobasis, Mycena singeri, Mycena luxaeterna, Mycena asterina, Mycena fera) e uma do gênero Mycena em fase de descrição.
A história dessas descobertas começou com o biólogo João Ruffi n Leme de Godoy. Grande conhecedor da região do Vale do Ribeira, ele descobriu de que alguns desses fungos eram conhecidos por moradores do parque em uma enorme jabuticabeira e convidou o químico especialista em bioluminescência Cassius V. Stevani, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, para visitar o local. Tendo em vista o desafio de identificar os fungos, Stevani prontamente percebeu a necessidade de envolver pesquisadores especializados em fungos – micólogos.
Stevani entrou então em contato com Dennis Desjardin (San Francisco State University) e Marina Capelari (Instituto de Botânica de São Paulo), ambos micólogos experientes em taxonomia de fungos da ordem Agaricales, na qual estão classificados os cogumelos verdadeiros, como o champignon e o shiitake.
Em geral, as espécies de fungos bioluminescentes ocorrem em ambientes florestais úmidos, pois dependem da umidade para se alimentar, crescer e reproduzir. Entretanto, mesmo quem visita com frequência a floresta não consegue observar facilmente essa intrigante característica de alguns fungos, principalmente porque a intensidade da emissão é fraca e os cogumelos são efêmeros e sazonais. Uma boa estratégia para tentar localiza-los é visitar a floresta à noite, especialmente no período de lua nova, crescente ou minguante, quando a mata está mais escura. Ainda assim, como geralmente se caminha na mata com lanternas, é necessário fazer paradas sem iluminação por alguns minutos, observando o solo, até que os olhos se habituem à escuridão, e a luz dos fungos possa ser identificada.
Todas as emissões de luz em fungos são esverdeadas, com comprimento de onda em torno de 530 nanometros. Mas existe uma variação de quais partes do fungo emitem luz entre as diferentes espécies. Basicamente, seu corpo é formado por dois tipos de estruturas: o micélio (corpo vegetativo), responsável pelo forrageio, obtenção de alimento e crescimento, e os corpos de frutifi cação (cogumelos) que asseguram a reprodução sexuada e a dispersão dos esporos. Muitas das espécies de fungos bioluminescentes emitem luz apenas do micélio, enquanto outras exibem a bioluminescência restrita ao cogumelo; raramente as duas estruturas emitem luz na mesma espécie.
A maioria dos fungos bioluminescentes é saprófita, ou seja, alimenta-se de matéria orgânica morta de origem vegetal, como folhas, gravetos e troncos. Eles têm uma enorme importância para o funcionamento dos ecossistemas terrestres em todo o planeta, atuando na ciclagem de nutrientes e na nutrição das plantas. Análises filogenéticas moleculares evidenciaram que os fungos bioluminescentes são polifiléticos, isto é, representados por algumas linhagens que, em certos casos, evoluíram de forma independente em relação à emissão de luz. Os fungos bioluminescentes estão distribuídos em três linhagens (mas possivelmente são quatro), confirmando a ideia de que a bioluminescência, algumas vezes, evoluiu independentemente nos fungos. Aqui são apresentadas informações referentes às três linhagens que apresentam resultados consistentes.
Linhagens luminosas
A primeira delas é representada por espécies dos gêneros Omphalotus e Neonothopanus, que abriga 12 espécies de fungos cujos cogumelos são bioluminescentes, bastante visíveis e fáceis de encontrar, mas com micélios que emitem luz apenas em alguns casos. Algumas dessas espécies são comuns na Europa, Estados Unidos, Japão e Australásia, onde têm nomes populares, como ‘Jack da lanterna’, ‘fungo da noite enluarada’ e ‘fungo fantasma’.
A segunda linhagem abriga cinco espécies do gênero Armillaria e é bem conhecida porque contém espécies que provocam doenças em raízes de plantas em zonas temperadas. Os cogumelos dessa linhagem são em geral muito apreciados na culinária, mas a bioluminescência nesse grupo está restrita ao micélio: nunca se encontrou um cogumelo do gênero Armillaria bioluminescente. A emissão de luz pelos fungos dessas duas linhagens é conhecida há milênios, mas essas espécies não ocorrem no Brasil.
A maioria das espécies de fungos bioluminescentes é tropical, com muitos representantes na América do Sul. Essas espécies estão agrupadas em uma terceira linhagem, que abriga 47 espécies, grande parte do gênero Mycena. Muitos desses fungos exibem o cogumelo e/ou o micélio bioluminescente. Todas essas espécies vivem livremente, sendo capazes de decompor madeira e serrapi lheira, com exceção de uma (Mycena citricolor), que é parasita e provoca doenças em plantações de café. Entre as 500 espécies conhecidas do gênero Mycena, 35 são bioluminescentes. Atualmente, Dennis Desjardin e colaboradores estão estudando a evolução da bioluminescência nesse grupo com base em caracteres moleculares, comparando sequências de DNA entre as diferentes espécies. Ainda não se sabe ao certo como ocorreu a evolução dentro dessa linhagem, mas é provável que a bioluminescência tenha surgido uma vez, e, posteriormente, muitas espécies tenham perdido a capacidade de emitir luz.
Por que Fungos Emitem Luz?
Entre os organismos bioluminescentes, os fungos são os menos conhecidos: não se sabe muito sobre o mecanismo das reações químicas associadas a esse processo, nem por que ele ocorre. A bioluminescência em fungos é decorrente de uma reação química que leva à emissão constante de luz e depende sempre da presença de oxigênio para se manifestar. Algumas hipóteses foram levantadas para explicar o fenômeno, tanto ecológicas quanto fisiológicas.
Do início do século 20 emergiu a ideia de que a emissão de luz pelos fungos poderia ajudar na dispersão de esporos. Em 1981, o entomólogo John Sivinski, da Florida University, publicou resultados de um experimento em que avaliou se a bioluminescência de cogumelos e do micélio estaria associada à atração de artrópodes, que poderiam ajudar na dispersão de propágulos. Segundo o experimento, mais animais foram capturados em armadilhas com fungos bioluminescentes que em armadilhas de controle, que não continham micélio nem cogumelos emissores de luz. Esses resultados indicam uma possível relação com a dispersão de esporos. Entretanto, apenas os cogumelos produzem esporos, e o experimento não explica a atração de animais pela luz do micélio. Adicionalmente, Sivinski sugeriu que a bioluminescência poderia ter a função de alertar os predadores de suas defesas (função aposemática) – afastando animais que comem fungos (conhecidos como fungívoros noturnos) – ou, ainda, que a luz poderia atrair predadores desses animais fungívoros, conferindo vantagens para os fungos bioluminescentes. Mas essas ideias ainda não foram adequadamente testadas e, mesmo que complementares, não têm muitas chances de explicar exclusivamente o porquê da bioluminescência.
Outra linha de raciocínio gerou ceticismo entre micólogos apaixonados pelos fungos, mas envolve uma explicação bastante plausível. Todos os fungos que emitem luz são saprófitos (decompõem matéria orgânica de origem animal). Segundo essa hipótese fisiológica, a bioluminescência seria um subproduto de processos metabólicos associados à destruição de lignina para atingir a celulose. A lignina (um polímero de glicose, como o amido) é a substância que forma a base da madeira, e a emissão de luz pelos fungos poderia estar associada a um efeito antioxidante, conferindo alta capacidade para decompor esse substrato sem o ônus da intoxicação pelas espécies reativas ao oxigênio geradas. Nesse caso, a emissão de luz não teria uma função direta, mas seria consequência do processo digestivo do fungo.
De qualquer maneira, as hipóteses não são mutuamente excludentes e é possível que a bioluminescência tenha surgido como subproduto desse processo metabólico e depois motivado a consolidação de processos ecológicos relacionados com a atração de animais, que podem estar associados com dispersão de esporos e/ou predação de fungívoros. Atualmente, diversos pesquisadores do Laboratório de Bioluminescência de Fungos, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), coordenado por Cassius V. Stevani, estudam os mecanismos bioquímicos responsáveis pela emissão de luz. Os estudos de fungos bioluminescentes têm o potencial de gerar novos conhecimentos, tanto acadêmicos quanto aplicados, até mesmo de fornecer informações sobre o significado biológico e ecológico da emissão. O grupo de pesquisa de Stevani investiga o mecanismo de bioluminescência em fungos, assim como novas substâncias bioativas em extratos dos cogumelos, o desenvolvimento de bioensaios ecotoxicológicos, a biorremediação de solos contaminados e a biodegradação de resíduos industriais.
Bioluminescentes na Amazônia
Embora sejam conhecidas dezenas de espécies de fungos bioluminescentes no mundo, apenas uma é conhecida na Amazônia. As recentes descobertas de espécies tropicais na Mata Atlântica são oriundas do esforço dos pesquisadores que, após serem informados por moradores locais, se dispuseram a investigar a existência dessa biodiversidade e se surpreenderam com as muitas espécies que ocorrem no Petar.
Como na Amazônia o conhecimento sobre a diversidade de fungos ainda é incipiente, e depende da presença dos especialistas, é provável que novas espécies existam e corram risco de extinção antes mesmo de serem descritas e catalogadas. Caboclos e ribeirinhos, que andam na floresta durante a noite para caçar, já repararam que muitas vezes folhas e galhos no chão brilham. O que eles não sabem é que essas espécies relativamente comuns são fungos não descritos e, portanto, desconhecidas para a ciência.
Conhecemos atualmente apenas uma espécie na Amazônia: Mycena lacrimans. Ela havia sido coletada na Reserva Ducke (AM) e descrita por Rolf Singer (1906-1994), micólogo alemão, que estudou dezenas de espécies na região amazônica entre as décadas de 1970/80. Entretanto, como fora coletada durante o dia, Singer não sabia que seus cogumelos eram bioluminescentes.
Raridade na Amazônia
Em 2005, durante uma expedição de uma disciplina de pós-graduação em ecologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) para a rodovia BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, um de nós (Braga-Neto) teve a oportunidade de penetrar na floresta e descobrir, por acaso, a ocorrência de cogumelos bioluminescentes. Eles foram localizados ao longo de igarapés, em florestas próximas ao quilômetro 83, no município de Careiro. Com a colaboração de Dennis Desjardin, a identidade da espécie foi revelada.
Na Amazônia, a presença de rodovias está diretamente associada ao desmatamento, perda de biodiversidade e degradação de serviços ambientais. Atualmente, a repavimentação da BR-319 é foco de grande preocupação, pois a rodovia corta uma imensa área do estado do Amazonas altamente preservada. Sem planejamento adequado, isso poderia catalisar degradação ambiental. Segundo Philip Fearnside e Paulo Maurício Graça, pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), os benefícios econômicos usados para justifi car a necessidade do asfaltamento da rodovia são questionáveis, sendo mais indicado transportar produtos por hidrovia, aproveitando o grande potencial natural da região. Infelizmente, o local onde os espécimes de Mycena lacrimans foram coletados já está desmatado, e não se sabe qual o efeito dessa alteração sobre a espécie. É certo que unidades de conservação podem reduzir significantemente o desmatamento e a perda de espécies. Duas unidades foram criadas recentemente na região, e o Ministério do Meio Ambiente está atuando, juntamente com a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (SDS-AM) pela criação e implementação de um mosaico de unidades de conservação ao longo da rodovia, com diferentes categorias de uso. Essas unidades tenderão a favorecer a conservação dessa espécie de fungo raro e permitirão que moradores locais e visitantes venham a conhecer pessoalmente sua existência. E, eventualmente, ajudar a descobrir novas riquezas naturais na região. Biodiversidade de Fungos Assim como as plantas e os animais, os fungos constituem um reino à parte, caracterizado por uma imensa diversidade e ampla distribuição geográfica. Entretanto, eles estão entre os organismos menos conhecidos do mundo, fato que é ainda mais acentuado em regiões tropicais. Essa realidade é preocupante, pois os fungos desempenham funções indispensáveis ao funcionamento de ecossistemas terrestres, atuando como decompositores, simbiontes e parasitas. Como o caso dos fungos bioluminescentes demonstra, o acúmulo de conhecimento e a descoberta de novas espécies estão intimamente associados à quantidade de pesquisadores envolvidos. Nos últimos anos, o número de micólogos atuando no Brasil teve uma significativa expansão, especialmente por alunos de pós-graduação do Rio Grande do Sul, Pernambuco, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Norte. Não existem apenas mais pesquisadores envolvidos; a produção per capita também aumentou significativamente. Esses jovens micólogos estão ampliando muito a capacidade de gerar conhecimento sobre a identidade e a ocorrência das espécies de fungos no país. Segundo informações compiladas da plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a produção de artigos científicos sobre fungos macroscópicos aumentou muito desde o começo desta década, atingindo cerca de 40 artigos apenas em 2007; um acréscimo superior a quatro vezes em relação à produção em 2000. | ||
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A história envolvendo a descoberta de fungos luminosos no Brasil começou com o biólogo João Ruffin Leme de Godoy. Ele descobriu que na região do Vale do Ribeira, em São Paulo, esses organismos ocupavam uma enorme jabuticabeira (Eugenia fluminensis).
- Em geral, as espécies de fungos bioluminescentes ocorrem em ambientes florestais úmidos, pois dependem da umidade para se alimentar, crescer e reproduzir. A maioria dos fungos bioluminescentes é saprófita, ou seja, alimenta-se de matéria orgânica morta de origem vegetal.
- Os fungos bioluminescentes estão distribuídos em três linhagens (mas possivelmente são quatro), confirmando a ideia de que a bioluminescência, nos fungos, algumas vezes, evoluiu independentemente.
- Entre os organismos bioluminescentes, os fungos são os menos conhecidos: não se sabe muito sobre o mecanismo das reações químicas associadas a esse processo, nem por que ele ocorre.
— Os editores
[ESTRUTURA DOS FUNGOS] CORPO VEGETATIVO
IMAGENS CEDIDAS PELO AUTOR | |
MICÉLIO CLARO/MICÉLIO ESCURO | |
[FUNGO MYCENA] ESPÉCIE RARA NA AMAZÔNIA
IMAGENS CEDIDAS PELO AUTOR | |
MYCENA CLARO/MYCENA ESCURO | |
PARA CONHECER MAIS | ||||
Fungi bioluminescence revisited. Dennis Desjardin e colab., em Photochemical & Photobiological Sciences, vol. 7, págs.170-182, 2008. Mycena lacrimans, a rare species from Amazonia, is bioluminescent. Dennis Desjardin e Ricardo Braga-Neto, em Edinburgh Journal of Botany, vol. 64, págs. 275-281, 2007. Bioluminescent Mycena species from São Paulo, Brazil. Dennis Desjardin e colab., em Mycologia, vol. 99, págs. 317-331, 2007. Laboratório de bioluminescência de fungos (IQ-USP), http://www.iq.usp.br/ wwwdocentes/stevani/ | ||||
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